Na sexta-feira, 17/05, voltei ao fatídico 92graus. Lugares que recebem shows de bandas underground são raridade aqui em Curitiba, por isso o público local fica refém dos mesmos lugares de sempre, os quais, com raras exceções, deixam a desejar na infraestrutura e na qualidade dos equipamentos de som. A programação do evento tinha como atração principal o show da banda de black metal Nightfall que, vinda da Grécia para turnê brasileira, seria acompanhada de suas congêneres nacionais Héia (GO), Noctus Arcanus (PR) e Finita (RS). Foi, no geral, um evento bastante confuso, mas que rendeu bons shows e algumas conversas interessantes.

O cartaz indicava que o evento começaria às 21h, mas, conhecendo o funcionamento dessas coisas, previ que os shows começariam um pouco mais tarde que isso. Bruno e Daniel, minhas companhias de todos os shows, insistiram em chegar às 21h, mas preferi sair de casa por volta das 22h, informada de que nenhuma banda havia começado a tocar. Quando cheguei, a frente do bar estava movimentada e alguma banda já ocupava o palco da casa. Marquei bobeira de não ter comprado ingresso antecipado e acabei pagando 60 reais na hora, mas o que me pegou de surpresa é que o evento que rolava dentro da casa não era aquele que eu tinha ido assistir. Sem avisar o público, o dono da casa marcou um outro evento para o mesmo dia mais cedo. Os shows de metal começariam, assim, muito mais tarde que o esperado.

Daniel ficou tão irritado que estava engraçado, e alguns outros metaleiros tristes e cansados também reclamavam na porta do bar. Achei uma tremenda sacanagem porque o show do Nightfall estava marcado há muitos meses e várias pessoas foram direto do trabalho para o 92graus. De qualquer forma, foi bom ver um rolê de metal mais movimentado, especialmente tendo em vista o quão deserto estava o show do último domingo. Foi curioso, no entanto, perceber como a maciça maioria do público do Nightfall era formada por gente que nunca vi na vida, em nenhum outro evento. Não que eu seja uma referência em rolê de metal, visto que passei a ir aos eventos com maior frequência apenas recentemente, mas fiquei com uma sensação bastante palpável de que o público que se despencou até o 92 na noite chuvosa de sexta tinha mais cara de frequentador de ~bar de rock~ do que da cena do metal mais ~underground~.

Costumo dividir o público do metal em duas categorias: ~bar de rock~ e ~showzinho~ (note o sarcasmo no uso de ambos os termos). A turma do bar de rock tem cara de babaca e costuma frequentar lugares com infraestrutura bacaninha e uma variada programação de covers de bandas ruins. Tem de um tudo: cover de Kiss, cover de Motörheadcover de Charlie Brown Jr… Já o povo do showzinho é um povo feio, triste e cansado. E mão de vaca, porque não paga ingresso pra ver cover. É o povo que, aqui em Curitiba, se despencava até o Linão, e que vai aos domingos ver as bandinhas que tocam de graça no Lado B até ser varrido para fora pelo Babbur.

O rolê do ~showzinho~ é historicamente feito na base da guerrilha. Ninguém tem dinheiro, os eventos dificilmente se pagam, mas as bandas e o público insistem por amor à música. Por isso me surpreendeu bastante que a banda principal tivesse um ônibus próprio. Na verdade faz sentido, já que o Héia está acompanhando o Nightfall em uma longa turnê brasileira. Um ônibus grande acomodava as bandas e uma carreta levava os equipamentos, uma produção caprichada da Tumba que garantiu que pela primeira vez na vida o som no 92 estivesse excelente. Além do equipamento, o Nightfall também trouxe de casa um engenheiro de som muito foda, o Dimitrios, que tem um estúdio especializado em Jazz em Atenas, mas topou estudar metal do zero pra fazer as turnês internacionais dos amigos trevosos.

Ante à irritação generalizada das bandas e do público, a banda principal foi colocada para abrir a noite. Tentei contar quantas pessoas assistiram o show principal, mas acho que não deu muito certo. No olhômetro contei 80 pessoas, até perguntei o que alguns amigos achavam e eles chutam números um pouco mais baixos. Era a primeira vez que eu ouvia Nightfall com alguma atenção, pois só conhecia uma ou duas músicas sugeridas pelo modo aleatório do Spotify, e devo admitir que o show deles foi uma grata surpresa. Começou super bregótico, com direito até a violino gravado, e foi se desenrolando até terminar com cara de hard rock. Pra ser honesta, não curti tanto o vocal nem a parte lírica da banda, mas convenhamos que letra de black metal melódico nunca é grande coisa. No entanto, os músicos foram sensacionais e a mixagem elevou consideravelmente a qualidade do som e da experiência, com destaque para o baterista, Fotis, e a baixista, Vassiliki.

Depois do show, quando todo mundo se encaminhou para a calçada em frente ao bar para respirar um ar fresco porque lá dentro é impossivelmente abafado, um cara bêbado perguntou se eu tinha gostado do show e, como costumo ser simpática com estranhos, respondi que sim. Ele prosseguiu fazendo uma quantidade enorme de perguntas do tipo por que eu escuto metal, por que frequento shows e, insatisfeito com cada uma das minhas respostas, voltava a insistir e insistir. Bruno fez menção de me puxar mais para perto dele, mas o bêbado não se ligou e eu já estava irritada. Respondi grosseira, mas, como ele não desistia, perguntei se ele estaria insistindo no interrogatório se em vez de mim falasse com Bruno. “Claro que não”, respondeu o inconveniente. Claro que não, porque ele é homem e mulheres têm que justificar sua existência no underground (e fora dele) o tempo todo. Mandei ele sair de perto de mim. Bruno e Daniel ficaram quietos durante toda essa interação, e o inconveniente só foi embora quando Bruno o dispensou em tom condescendente dizendo que estava tudo bem.

Fiquei muitos anos sem frequentar rolês de metal, e meu retorno gradual coincidiu com o início do namoro com Bruno. Foi, afinal, no show do Fossilization que nos conhecemos. Por frequentar os rolês acompanhada dele, primeiro como amigo, depois como namorado, tenho percebido essas violências de gênero de modo menos ativamente agressivo. Esse tipo de assédio, somado a atitudes generalizadas de misoginia e racismo me mantiveram afastada do metal por muito tempo e, honestamente, ainda me desmotivam bastante. Por ter trabalhado com abordagens interseccionais na minha tese de doutorado, hoje tenho instrumentos teóricos e metodológicos para analisar esse tipo de questão, e é o que pretendo fazer a partir desses diários de campo.

Falando em violência, houve uma menção de briga durante o show do Nightfall. Pelo que pude assuntar, um cara que ninguém conhecia deu um soco em um outro que estava acompanhado de vários amigos, e quando todos se viraram para pegá-lo, ele saiu do bar e foi embora. O cara que levou o soco ficou com o supercílio aberto. Depois alguém comentou que poderia se tratar de um dos membros do Amen Corner, mas eu não saberia reconhecer, porque, mesmo sendo de Curitiba, o Amen Corner nunca toca aqui. O vocalista do Nightfall, como qualquer pessoa com um mínimo de decência parou o show até ver que nenhuma violência estava acontecendo, depois retomou do início a música interrompida.

Mais que apenas um cara decente, Efthimis, o vocalista do Nightfall, demonstrou ser um cara muito firmeza ao ficar na plateia até o fim do último show da última banda. Após a banda principal, Héia subiu ao palco do 92 já sem parte dos equipamentos utilizados pelo Nightfall, o que provocou uma pronunciada deficiência na qualidade do som. Héia é uma banda de black metal fundada em Goiás, em 1999, e liderada pelo calveludo Místico. Como manda o black metal tradicional, o som é bem cru. E é só isso mesmo, não consegui perceber nada de diferente ou de especial na banda, não teve nada em particular que tenha me chamado a atenção.

Pensando bem, o show do Héia me deu um insight sobre essas bandas mais antigas de black metal brasileiras, que surgiram num contexto em que o acesso discos/fitas/CDs ainda era muito caro e difícil. Acredito que esse fator pese na definição do estilo das bandas, que buscavam proporcionar ao seu público algo mais ou menos próximo do som que nem sempre podiam consumir. Enfim, é um tópico a se pensar no decorrer dos registros.

Gosto muitíssimo do black metal do Noctus Arcanus, mas, infelizmente, eles precisaram cancelar de última hora a participação no evento. A saída recente do baterista levou a algumas dificuldades com um músico substituto que não puderam ser resolvidas em tempo hábil, uma pena.

Se umas 20–e-poucas pessoas assistiram o show do Héia, metade disso viu a última banda, Finita. Eu nunca tinha ouvido falar da banda, mas Daniel tinha comentado que era “tipo um Tristania de Londrina”. A banda informou ser, na verdade, de Santa Maria-RS, porém no meu coração vai ser sempre o Tristania de Londrina. A formação é bem típica de bandinha gótica, uns nerdões nos instrumentos e uma vocalista gatinha, a Luana. Como em toda banda de jovens, a apresentação foi um pouco confusa, com direito a corpse paint, vocal lírico, gutural, e tudo ao mesmo tempo com o equipamento de som horroroso do 92.

O atraso no início do evento e a inversão da ordem das bandas prejudicou, no fim das contas, as bandas convidadas, especialmente a Finita. Já era tarde quando subiram ao palco, e eu reparei num senhor que assistia ao show vestindo uma camiseta da banda, provavelmente o pai de algum dos integrantes. Imagino até que tenha sido ele quem dirigiu todo mundo para vir tocar em Curitiba, como fazia antigamente o meu padrasto com a banda de metal da filha dele. Isso me fez enxergar a banda com tanto carinho!

Achei que ainda falta um pouco de maturidade para entender como os músicos trabalham melhor juntos, como desenvolver uma identidade sonora que, embora converse com diversas referências — de Arch Enemy a Trail of Tears — não seja tão literal. Mas a energia dos músicos no palco foi super bacana, mesmo imaginando que estivessem todos cansados da viagem e de tocar no final da noite. Luana tem uma presença muito marcante, tanto que nem consegui reparar muito nos outros músicos.

Retomando um pouco do que escrevi semana passada sobre a Psycho Decadence, acho que a gente que tá no ~underground~ há mais tempo não tá em posição de cobrar um “produto definitivo” de músicos que se juntam para experimentar seus limites tanto individual como coletivamente. Gosto mais da ideia de prestigiar, apoiar e, principalmente, acompanhar as surpresas que bandas tão jovens podem trazer. Dito isso, queria realmente que mais gente tivesse visto o show da Finita, banda que acredito ter bastante potencial. No meu ver, será muito legal se a banda souber direcionar o foco pra um som gótico com pegada mais pop. Consigo ver eles tocando em bares, festas e fazendo um nome por si nesse nicho, bem mais que no metal extremo (afinal alguém tem que ganhar algum dinheiro nessa joça).

Gosto desses rolês mais movimentados porque eles costumam render mais observações e mais histórias. Como melhor da noite eu colocaria, certamente, o fato do Nightfall ser uma banda bastante acessível ao público e respeitosa com as bandas convidadas, tão diferente das bandas daqui de Curitiba. Espero que os gregos gostem da cachaça e pão de queijo que sugerimos provar quando a turnê passar por Minas Gerais. E o maior problema, definitivamente, foi da parte do 92graus que enfiou uma porra de um evento inteiro no mesmo dia e horário dos shows já anunciados há meses. Mas, por fim, creio ter sido uma experiência rica por tratar-se de uma das raras ocasiões em que convergiram os públicos de ~bar de rock~ e de ~showzinho~, afinal, quando a banda é gringa todo mundo resolve aparecer.

EDIT

Um adendo feito no instagram pelo Divon, do Abadon (rimou!) que vale muito à pena colocar aqui a título de esclarecimento:

só um adendo nesse texto pra não gerar nenhum tipo de má interpretação generalizada: Nenhum banda toca de graça no Lado B. Eu posso dizer isso com propriedade. Babbur e Regina não cobram entrada aos domingos, mas toda e qualquer banda que toca ali, tem seu cachê garantido. Sendo daqui ou não, e, mesmo as que vêm de fora, além do cachê, têm hospedagem e alimentação garantida. Aqui há coisa que levamos muito a sério, e uma delas é: Underground não é sinônimo de amadorismo!

Valeu pelo insight! Só prova que o Lado B é o bar mais firmeza dessa cidade <3

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