Não consigo não ser fiel às minhas verdades, faz parte dessa minha natureza de 8 ou 80, de amor ou desprezo, sem espaço para meios termos e zonas cinzentas. Katatonia é para mim esse tipo de amor-fiel: tem sido minha banda favorita desde os quinze ou dezesseis anos, época em que o metal gótico/sinfônico já me enchia o saco por sua falta de profundidade; faltava algo que tocasse mais fundo as feridas do emocional, que fizesse doer de verdade. (Há que se questionar aqui a profundidade das feridas do emocional de alguém de quinze anos, né, por favor. Estamos aí até hoje fazendo terapia).
Fundado na Suécia em 1991, o Katatonia pode ter sua trajetória dividida em três principais fases:
- Death/Doom, gênero musical que a banda ajudou a criar (álbuns Dance of December Souls e Brave Murder Day);
- Doom/gótico, período de discografia prolífica (álbuns Discouraged Ones, Tonight’s Decision, Viva Emptiness, The Great Cold Distance e Night is the New Day);
- Gótico/prog, período de produção mais recente (álbuns Dead End Kings, The Fall of Hearts, City Burials e Sky Void of Stars).
Os temas das músicas são predominantemente sorumbáticos, e abordam questões como abandono, invisibilidade, inutilidade, sofrimento, desesperança e desilusão. Hm, por que parece que estou descrevendo sintomas de depressão?
O problema é que nessa fase mais recente, em que a banda flerta com o prog, as músicas estão meio… felizes demais. É consenso entre os fãs que Katatonia deixou de ser bom nos idos de 2012, o que traz um real risco de frustração a assistir um show dessa banda.
Essa é a terceira vez que o Katatonia vem ao Brasil. Na primeira delas, em 2017 ou 2018, eu enfrentava um período horroroso de depressão e buscava na minha banda favorita um lenitivo, até que caí da escada da garagem e quebrei o pé. Não pude ir ao show. Na segunda vinda deles ao Brasil, em 2023, eu estava vivendo o mais puro espírito do Katatonia porque estava desempregada, tinha levado um pé na bunda e ainda estava escrevendo minha tese de doutorado. Eu estava tão ferrada que ir ao show não era uma opção. Porém é 2024, minha vida está mais estável e, honestamente, bem bacana, e eu não perderia esse show por nada — mesmo arriscando a decepção de só ouvir músicas novas.
Não me planejei para ir, não comprei ingressos com antecedência. Nada. Por um capricho do destino, encontrei no domingo passado com um dos meninos do Noctus Arcanus que me confirmou que ele e um amigo estariam em São Paulo para o show. Na hora sugeri que dividíssemos um Airbnb, e, assim, tudo logo se ajeitou. Timóteo e Felipe estariam em SP na quinta-feira para o show do Enslaved, eu chegaria na sexta para vermos juntos o Katatonia.
A semana do feriado de 15 de novembro foi bastante movimentada de shows porque muitas bandas gringas tocaram em festivais na Colômbia e no Chile. Na quarta, dia 13/11, também teve show do Satyricon, uma das minhas bandas favoritas de black metal, mas não consegui me liberar do trabalho para ir. Uma pena.
Peguei o último ônibus de quinta-feira, que atrasou um pouco por causa do trânsito da véspera ade feriado. A rodoviária estava muito cheia e eu tentava flagrar entre os passageiros algum possível katatonier. Tinha só um barbudo triste que tinha cara de fã, todo o resto eram famílias ou fãs de Linkin Park indo a SP para o show da banda no estádio do Palmeiras.
Cheguei em SP às 8 da manhã de sexta e embarquei no metrô até a estação Japão Liberdade, a mais próxima do endereço do Airbnb na Bela Vista. Eu conheço mais ou menos a região porque fiquei por ali na casa de um amigo quando teve o show do Belphegor em 2022. Não é um lugar agradável para caminhar sozinha de manhã cedo, por isso preferi chamar um Uber até o lugar onde os meninos já estavam hospedados.
Felipe acordou cedo para me receber, tadinho. Timóteo estava desfalecido na cama, onde ficou até por volta das 17h. Eu tinha a intenção de ver a exposição dos Tesouros do Peru no CCBB, mas o cansaço da viagem me venceu e também passei a tarde dormindo. Estávamos os três capotados, um de cada lado do pequeno apartamento.
Almojantamos num boteco na esquina do Airbnb e fomos nos arrumar para o show la pelas 18h30. Eram 20h quando chamamos um Uber até o Carioca Club, em Pinheiros. O lugar estava pouco movimentado, e logo os meninos encontraram alguns amigos deles também de Curitiba. Entramos no rolê faltando alguns minutos para o show começar, e a casa estava bem cheia, mas não lotada. Alguém comentou que estava bem mais cheia que no show do Satyricon, na quarta-feira.
Eram 21h em ponto quando o Katatonia subiu ao palco do Carioca Club. A banda de Jonas Renkse se apresentaria com um guitarrista substituto, já que Anders Nyström está afastado da banda e Roger Öjersson voltara para a Suécia de casamento marcado. O setlist foi um pouco diferente do que eu tinha visto para essa turnê, e abriu com a música Austerity em vez de Birds — ambas do disco mais recente, Sky Void of Stars. É, como falei anteriormente, um disco que passou meio batido para mim. Mas o impacto de finalmente ver ao vivo a banda que escuto tanto há tantos anos foi enorme e fiquei por umas duas ou três músicas parada, tentando absorver ao máximo o vocal cristalino do Jonas Renkse.
Eu parecia que ia transbordar quando a banda tocou seguidas as músicas Deliberation e Forsaker, do álbum Great Cold Distance, que foi, na minha opinião, o último grande disco do Katatonia. Os meninos saíram para fumar e eu aproveitei o movimento para me enfiar num canto mais próximo ao palco, onde o som estava melhor. Foi quando eu vi de pertinho o Jonas cantar For My Demons, minha música favorita do meu álbum favorito, Tonight’s Decision. Eu gritei, ri, chorei, cantei junto como se não houvesse amanhã e fiquei muito admirada de ver a entrega do público.

O setlist completo foi o seguinte:
- Austerity
2. Colossal Shade
3. Lethean
4. Deliberation
5. Forsaker
6. Opaline
7. For My Demons
8. Leaders
9. Onward Into Battle
10. Soil’s Song
11. Birds
12. Old Heart Falls
13. Criminals
14. My Twin
15. Atrium
Bis:
16. July
17. Evidence
Aiai, me dá um quentinho no coração só de contar como esse show foi especial para mim!
Os shows em SP costumam terminar cedo, antes do horário do último metrô. Eu, os meninos e mais um pessoal ficamos ali em volta do Carioca mesmo, primeiro pegando cerveja de vendedores ambulantes, depois migramos para um barzinho na esquina.
Cada um dos vendedores ambulantes tinha uma caixa de som bluetooth daquelas bem potentes e eles ficavam competindo para ver quem colocava o som mais alto. O mais engraçado era um rapazinho que, se você comprasse cerveja dele, ele te deixava escolher a música. Os meninos aproveitaram para fazer uma divulgação básica do Noctus Arcanus e do HellLight, depois a playlist foi degringolando até tocar piseiro.
Foi nessa altura da noite que uma guria de São Paulo mesmo se juntou a nós com um papo chato sobre ter visto todos os shows de todas as bandas do mundo tentando impressionar os meninos do Noctus. Ela parecia bem desesperada para pegar qualquer um dos dois, ou pegar os dois, não sei. Quando ela soube que eu também sou de Curitiba e estava dividindo hospedagem com eles me cutucou e disse “Nossa, você passa bem em Curitiba, hein?”. Hahaha, tolinha.
Essa observação da guria — eu não cheguei sequer a saber o nome dela — sobre “passar bem em Curitiba” se referia a caras que são aquele padrãozão metaleiro: brancos, altos, barba e cabelo comprido claro ou loiro e tatuagens. Ela se queixou dos caras de SP serem “horríveis”, o que eu imediatamente li como sendo não-brancos, sendo a própria guria não-branca como eu. Fiquei decepcionada, mas não exatamente surpresa.
É verdade que o Felipe e o Timóteo são bem gatinhos, já falei do efeito boy band que a banda deles tem com o público feminino num post anterior. Mas é engraçado porque, sendo amiga deles, fico sabendo das mil desventuras amorosas de ambos e da infinitude de mulheres que estão sempre atrás dos dois. Observo que a eles não agrada a quantidade (e a qualidade) de mulheres atiradas: eles ficam constrangidos, e parecem preferir eles mesmos tomar suas iniciativas. Uma pena que tomam iniciativa só em relação às gurias mais padrãozinho/populares do rolê e acabam tomando toco toda vez, porque as populares não querem saber de homem pobre. (E tão erradas? kkkkk)
Lembrei da questão da Prateleira do Amor, da pesquisadora Valeska Zanello, da UnB. Ela fala de como marcadores de diferenças interseccionais modulam as expectativas e possibilidades de sucesso de mulheres de diferentes categorias no mercado do amor romântico. Para a moça desesperada de SP, dois caras brancos do sul parecem um padrão ideal, mas para esses dois uma moça não-branca, não bonita e, honestamente, chata de doer parece tudo menos desejável.
Um dos meninos (alguém me lembra depois de problematizar o uso desse termo infantilizante para tratar dos meus amigos) tinha suas atenções fixadas numa moça muito branca, muito ruiva e bem magrinha que também estava por ali. Mas a moça parecia entretida numa conversa de horas a fio com um cabeludão tipo Peter Steele (que inclusive vestia uma camiseta do Type O Negative) que alguém disse ser europeu. João amava Teresa que amava Raimundo, que amava Maria que amava Joaquim, que amava Lili, que não amava ninguém.
A moça dava muito mole para o cabeludão que parecia talvez lisonjeado com a atenção, mas, possivelmente, sentia-se tão desconfortável quanto meus dois amigos com a chatona desesperada. Abrimos uma bet entre os fofoqueiros valendo uma cerveja para quem acertasse o destino do tal casal. Para mim, a iniciativa da moça parecia frustrada desde o início, e apostei que ele a colocaria num Uber de volta para casa e iria embora.
Um dos fofoqueiros do rolê era um careca (no sentido de calvo, não de skinhead) de Santa Catarina que era absurdamente chato. Ele reparou que a ruivinha do cabeludão segurava um baseado e interrompeu o casal pedindo uma bola. Foi aí que o cabeludão se mexeu e beijou a ruivinha, mas fiquei de cara porque o careca mala manipulou a bet. De qualquer forma, o que aconteceu foi exatamente o previsto: O cabeludão colocou a ruivinha num Uber e foi embora sozinho.
Depois de uma rodada de cachaça, Timóteo estava pra lá de Bagdá competindo com o careca para ver quem era mais mala. Brinquei que era o Timo porque ele é mais alto, mas mais mala que aquele careca realmente ainda está para existir. Alguém sugeriu que tentássemos juntar o careca com a desesperada (e, veja você, continuo sem saber o nome de ninguém), mas aparentemente os dois já eram amigos. Mas estavam perdendo a oportunidade de ser um casal daqueles.
Outra figura interessante que se juntou à rodinha de depois do show foi uma moça não binária. Vou chamar de moça por que ela usa pronomes femininos e neutros. Ela é de Belo Horizonte e foi ao show sozinha como presente de aniversário. Além de gente finíssima, ela é uma ilustradora talentosa de quadrinhos e games! Dela, eu me arrependo de não ter perguntado o nome ou trocado contato hehehe.
A rodada de cachaça foi devastadora para todos. Fiz que não consegui tomar minha dose, mas, na verdade, eu nem queria tomar. Os meninos precisavam ir embora porque não se aguentavam em pé, enquanto eu ficava com um rapaz num canto. Ri muito quando um dos meus amigos dizia “Vai transar, amiga. A gente vai voltar pra hospedagem e depois vc encontra a gente“. Mas, na verdade, eu também precisava ir embora porque voltaria cedo na manhã seguinte para Curitiba.
Levei as crianças para casa e fui dormir contente por ter, finalmente, conseguido ver minha banda do coração. O rolê divertido, cheio de fofoca e tiração de sarro, foi a cereja do bolo dessa viagem que foi tão rápida quanto cansativa. Valeu à pena demais! Estou mais pobre, mas estou feliz.
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