Chamar de “primitivo” o que se observa hoje em partes do underground extremo brasileiro não é nostalgia ingênua. É uma escolha política e estética. O que retorna não é apenas um som com características de uma época, mas um regime de sensibilidades que recusa a equivalência entre tecnicalidade e qualidade. Nesse quadro, “velho” não significa atrasado; significa reduzir mediações, cortar excessos, recentrar a música na expressão de afetos difíceis, como raiva, desencanto, desespero, e religá-la a contextos sociais concretos. É um gesto que reorganiza prioridades: menos lapidação digital, mais convicção; menos performance de virtuosismo, mais coerência de atitude.

A trajetória do Velho, enraizada na Baixada Fluminense, ajuda a entender a materialidade dessa primitividade. A periferia não entra como cenário exotizado, mas como tecnologia social que dá sentido a escolhas sonoras e temáticas. O ruído áspero, o timbre arenoso, a mixagem que preserva imperfeições, o vocal em português que não apara arestas: tudo aponta para uma recusa do polimento enquanto valor em si e para a manutenção de uma distância crítica em relação às expectativas de comercialização impostas pela lógica do mercado. No plano lírico, a opção por uma misantropia explícita — isolamento, crítica à sociabilidade, saúde mental como fissura — desloca o eixo do black metal de uma rebelião teológica/disciplinar para uma crítica que é, a um só tempo, existencial e social. Não há fuga para mitologias importadas; há enfrentamento de uma experiência brasileira de urbanidade tensa, precariedade e desencanto. Essa operação traduz uma dimensão cultural específica: o black metal como linguagem para elaborar conflitos do Brasil urbano, com seu vocabulário de estetização particular.

Inserir o Podridão nessa discussão amplia esse panorama. A banda opera no léxico do blackened death metal: riffs densos, afinação grave, ênfase no corpo e na decomposição. O “grotesco” aqui não é choque gratuito; é uma forma de recolocar a vulnerabilidade e a finitude do corpo no centro de uma música que, muitas vezes, foi capturada por métricas de proeza técnica. Existe um circuito de cultura implicado nesse gesto. Ao preferir timbres saturados, gravação crua e repertório lírico de horror físico, a banda enfatiza materialidade contra abstração. Em termos culturais, isso opera como crítica à estetização do extremo: o desconforto volta a ser um dado da experiência, não apenas um elemento de imagem. O circuito ao vivo, caracterizado pelas turnês constantes e pela adesão à ética do palco como “vitrine” do real, reforça o vínculo com práticas do underground que valorizam presença, risco e improviso dentro de parâmetros próprios do gênero.

Velho e Podridão trabalham negatividades distintas: o primeiro concentra-se no psicológico e no social; o segundo, no biológico e no abjeto. Convergem, no entanto, ao recusar a equivalência entre virtuosismo e “música melhor”; ambos tratam produção como parte da mensagem; ambos operam com repertórios de referências que preservam conexões com a tradição brasileira do black metal não como fetiche revivalista, mas como linguagem que se atualiza no presente. Nesse sentido, o estilo old school deixa de ser categoria histórica e vira categoria estética. É um modo de fazer que se mede por critérios independentes, validados pelo próprio circuito: firmeza de direção, parcimônia em adornos, vigilância contra a encenação vazia.

Entretanto, todo retorno ao “primitivo” sugere riscos: fetichização do ruído, fechamento dogmático, repetição – aquele batido vocabulário de todo tr00zão. No caso das duas bandas, a solução é manter critério, atualizando temas sem diluir postura e usando o passado como caixa de ferramentas, não como moldura obrigatória. O enraizamento se constrói pela ancoragem no local: cantar em português, tematizar experiências comuns e cultivar o circuito ao vivo dificultam a conversão do som em pose e marra. Essa decisão tem desdobramentos no plano social, uma vez que reinsere o ruído como linguagem da cena, reafirma o underground como espaço de valor não negociável e devolve à música a capacidade de nomear experiências extremas sem mediá-las demais.

Se há futuro para a cena, ele passa pela manutenção dessa gramática de contenção e densidade: timbres que não pedem desculpa, letras que não sobem no palanque, discos que soam como gente tocando junto. Velho e Podridão demonstram que “primitivo” pode ser uma forma contemporânea de precisão estética e social. Em vez de espetáculo, ofício; em vez de brilho, substância. É assim que a alma do extremo segue reconhecível, e, por isso mesmo, necessária.

Velho e Podridão em Curitiba – abertura com Ethel Hunter

Data: 24 de outubro de 2025 (sexta-feira)
Abertura da casa: 19h
Local: Basement Cultural
Endereço: Rua Desembargador Benvindo Valente, 260 – São Francisco, Curitiba – PR
Ingressos: Terceiro lote a partir de R$ 69 (ingresso + taxas) pelo site 101tickets.com.br

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